Open-access LÍNGUA, RAÇA E O SUL GLOBAL: ENFOCANDO AS LENTES PARA A IGUALDADE E A JUSTIÇA SOCIAL NUM MUNDO MULTIPOLAR CONTEMPORÂNEO

LANGUAGE, RACE AND THE GLOBAL SOUTH: FOCUSING ON THE LENS FOR EQUALITY AND SOCIAL JUSTICE IN A CONTEMPORARY MULTIPOLAR WORLD

“(...) A nenhum africano foi dado um assento no comitê de unificação e os resultados são que línguas recém formadas compreendem, uma mistura de xhosa, zulu, ndebele, kaffir de cozinha, nyanja e inglês. Para mim, não é a língua shona que as pessoas brancas estão tentando forçar, mas a língua de um homem branco”. Rusike (O Espalho Bantu, 1934)

Língua e raça - o que envolvem, o que constrõem, de onde derivam e como são (re)formadas. Essas são algumas das muitas questões que (inter)faceiam os campos de investigação da Linguística Aplicada Crítica e da Sociolinguística Decolonial (Antia; Makoni, 2023; Makoni; Kaiper-Marquez; Mokwena, 2022; Pennycook; Makoni, 2019; Rajagopalan, 2024; Severo; Makoni, 2023; Silva, 2024; Silva; Cobucci, 2024; Silva; Makoni; Pennycook, 2014). As pesquisas realizadas nesses campos ou esferas de investigação têm sido historicamente situadas a partir do Norte da Europa e da América do Norte e, consequentemente, têm-se baseado em quadros teóricos e epistemológicos ocidentais. Argumentamos que isso é imensamente problemático, uma vez que o que está ausente desse foco ocidental/norteado são as práticas linguísticas e os quadros de conhecimentos centrados nas línguas que existiram e continuam a emergir fora da Euro-América, nomeadamente, no que se designa por Sul Global.

O termo/constructo “Sul Global” tem múltiplas conotações, dentre elas geográficas e geopolíticas. Neste dossiê temático da Revista “Trabalhos em Linguística Aplicada”, “Sul Global” refere-se, em termos gerais, a pessoas, lugares e ideias que foram deixados de fora da grande narrativa da modernidade. Por vezes, pode ser utilizado para referir-se literalmente ao Sul, às regiões da América do Sul e de grande parte de África, por exemplo, que não fizeram parte da marcha ascendente do “progresso” econômico, social e político das nações mais ricas. Mais importante ainda, refere-se a histórias mais alargadas de exclusão e privação de direitos a nível global. Consequentemente, quando nos referimos ao Sul Global, concentramo-nos nas partes do mundo que têm sido objeto do colonialismo europeu desde o século XV e que constituem o chamado “mundo maioritário” (que abarca cerca de 80% da população mundial). Em contrapartida, o Sul Global é mais do que uma região geográfica. É também um termo político-econômico sinônimo de “terceiro”, “em desenvolvimento”/”subdesenvolvimento” ou áreas “marginalizadas” em todo o mundo. As noções do Sul Global podem referir-se aos pobres urbanos no hemisfério Norte e aos pobres rurais no hemisfério Sul; aos que lutam contra formas de preconceito racial, de gênero e sexualidade; aos que têm empregos precários em diferentes partes do mundo; e aos que não conseguem pagar os elevados custos das mensalidades nas universidades tanto no Norte como no Sul Global (Pennycook e Makoni, 2019).

Em outras palavras, “Sul Global” é diverso e plural e esta pluralidade tem impacto na produção e circulação do conhecimento. Surge de um impulso a-teórico no “interesse de algum projeto, sonho, desejo, esperança, questão ou condição patológica” (Bade, 2021, p. 21). Por exemplo, num contexto africano, os estudos acadêmicos estão fortemente orientados para a África do Sul e não para outros contextos africanos, apesar de, em termos de recursos materiais, a África do Sul ser o país mais desigual do mundo. O mesmo se vivencia no Brasil. Quando se fala em “Brasil” se remete à produção científica-acadêmico das e nas regiões Sul e Sudeste que é, a nosso ver, o “Norte-Global” acadêmico brasileiro, mas não as regiões Norte, Nordeste e/ Centro-Oeste, que é o “Sul-Global”. Se a investigação sobre o Sul Global não for efetuada com cuidado, pode-se reforçar ainda mais a desigualdade de espaços como a África do Sul e Brasil. Em síntese, o termo “Sul Global” é uma ideia não isenta dos seus próprios desafios e contradições, e resulta frequentemente num “espaço hierarquizado” (Makoni, 2019, p. 149) que existe tanto em locais do Norte como do Sul. Consequentemente, com o foco na expansão desses espaços geográficos e político-econômicos, deriva uma mudança necessária das perspectivas do Norte usadas para entender os espaços do Sul para epistemologias e teorias criadas e derivadas das estruturas do Sul. Além disso, ao reconhecer que os saberes do Sul nascem na luta, alargamos esta proposta de modo a incluir as epistemologias nascidas durante a luta e que são um produto da luta.

Levando em consideração essas questões epistemológicas e ao (re)ler criticamente outros estudiosos/as que problematizam o construto/conceito “Sul Global” (Cusicanqui, 2010, 2019; Ndlovu; Leketi, 2020; Palomino, 2019; Rajagopalan, 2024; Silva; Cobucci, 2024; Silva; Keating, 2019; só para citar alguns/mas), muito do que temos vivenciado e publicado na Linguística Aplicada Crítica e na Sociolinguística Decolonial a nível glocal/ global baseia-se em noções ortodoxas de “boas práticas”, com pouca atenção aos fundamentos ideológicos e epistemológicos que, em primeiro lugar, deram origem a essas práticas sociais. Consequentemente, o conhecimento situado, nascido das filosofias platônicas e das ideologias de unicidade do período do Iluminismo europeu, tem invariavelmente obliterado as orientações indígenas e africanas em relação à língua, ao lugar dos indígenas/ africanos e à afirmação das identidades culturais das comunidades do Sul Global no mundo contemporâneo. Quando enquadrada nesta perspectiva, é necessário, portanto, recentrar a nossa sociologia do conhecimento não só para desafiar os paradigmas ocidentais/coloniais de unicidade (como se vê nos discursos sobre a língua, a raça, o gênero e letramentos), mas também para oferecer práticas panorâmicas e transformadoras sob a égide da fluidez, da flexibilidade e da complexidade, que definem os princípios fundamentais das teorias, das epistemologias do Sul e das pessoas que elas representam. Ao desuniversalizar conceitos ocidentais como globalização e língua materna (Makoni; Pennycook, 2014), por exemplo, há uma oferta de complexidade paradigmática sobre língua, raça e sociedade (Severo; Makoni, 2023. Silva, 2024), que se estende para além de formas de saber, ser e agir previamente concebidas a partir de hegemonias ocidentais.

A partir de uma reflexão científica dos textos que fazem parte deste dossiê temático da Revista Trabalhos em Linguística Aplicada, nos indagamos: Que “Sul Global” é esse a que nós acadêmicos nos referimos? Percebemos, sentimos e vivenciamos, nas nossas experiências tanto no Brasil quanto em África - pois os dois editores deste dossiê são um brasileiro e um sul-africano - um movimento que tem sido caracterizado na literatura acadêmicocientífica como “Sul Global” (Global South), que se alinha a uma perspectiva decolonial de (re)construção e disseminação dos conhecimentos e dos saberes. O linguista aplicado (crítico) indiano-brasileiro Kanavillil Rajagopalan (2023), da Unicamp, nos sinaliza e nos alerta de que o colonialismo foi muito mais do que um capítulo macabro na história da humanidade, ao longo do qual um grupo de nações europeias se auto outorgaram o direito de se lançar numa aventura predatória rumo a distantes povos da África, Ásia e América Latina, submetendo-os a inomináveis iniquidades e humilhações, sugando impiedosamente suas riquezas e deixando-os na penúria e total desamparo. O colonialismo tomou conta da mente dos povos (e adiciono também da mente de muitos/as linguistas aplicados/as, sociolinguistas e educadores/as) dentro do regime de escravatura, ainda que muitas vezes disfarçado com outros nomes e eufemismos engenhosos, ao qual os conquistadores os submeteram na sua incansável procura por bens alheios, movida pela ganância e pelo delírio desmedido de sua suposta superioridade moral e intelectual. E a sequela mais gritante e danosa dessa lavagem cerebral à qual os povos dominados foram submetidos leva o nome de colonialidade.

Contudo, Tânia Rezende, pesquisadora cerradeira de Sociolinguística, com ênfase em Cosmolinguística, afirma que a “[...] manutenção da geopolítica do conhecimento, com as atualizações contemporâneas, no tensionamento polarizado de resistência, entre a colonialidade e a decolonialidade do poder, emerge desta enunciação metafórica Norte Global e Sul Global”. Essa enunciação metafórica, segundo a autora, continua sustentando a mentalidade moderna colonial, (i) ao bipartir o mundo em Norte e Sul, (ii) ao localizar no Sul Global, principalmente, os povos saqueados, pilhados, subalternizados e empobrecidos pelo Norte Global, e (iii) ao criar outras invisibilidades, outras raças, espécies, outros tipos e por definir e determinar filiações, que são os fundamentos do neoliberalismo (Mbembe, 2018).

Sendo assim, a nosso ver, a política de Estado para a educação escolar é neoliberal, do mesmo modo, ancorada na razão moderna, sustentada nas ideologias cristãs, coloniais escravagistas: é salvacionista, adaptativa e meritocrática; é tolerante, exige capacidade de superação e resiliência, sempre do/a diferente, sempre do/a outro/a. Sem condições adequadas de trabalho, os/as trabalhadores/as da educação se viram com gambiarras, como o suborno pedagógico. Entretanto, uma pedagogia freireana alicerçada na “pedagogia da autonomia”, “pedagogia do esperançar”, e com uma compreensão horizontalizada e verticalizada das pedagogias das opressões e das violências, sejam elas físicas, mentais e/ou simbólicas, em diálogo na “educação inter/transcultural e no bilinguismo epistêmico, nos aponta possibilidades de acolher outras realidades educativas para abertura a outros mundos, outras cosmopercepções, com a generosidade do compartilhar saberes, sentimentos e espiritualidades em línguas diversas, em coaprendizagens, rumo à intercompreensão”.

O que apresentamos, problematizamos e defendemos nesta apresentação, corroborando o argumento de Rezende (no prelo), “é que nós não estamos no centro do mundo que a colonialidade maniqueísta inventou, tampouco estamos nas suas periferias ou margens”.

Conforme afirma Rezende (no prelo) em uma mesa-redonda em que estivemos juntos na Unijuí, “[...] não nos situamos também no Sul Global que a decolonialidade, ainda maniqueísta, contrainventou, porque nos situaram nas margens ou nas periferias desse polo, mas nós não aceitamos esse lugar. Quem enuncia cria o lugar e posiciona os corpos nos lugares. Nós não enunciamos os lugares, mas não aceitamos que nossos corpos sejam posicionados pelos/as enunciadores/as dos lugares. As referências, de onde nós estamos tirando essas ideias e as posturas que as sustentam, vêm das vozes [...] de nossa ancestralidade cerradeira, que merecem respeito”.

Em síntese, a partir da nossa postura epistemológica e ontológica e praxiologias do Brasil Central - Africa do Sul, para compreendermos a (inter)relação entre Língua, Raça e Sul Global (Severo; Makoni, 2023; Silva, 2024; Silva; Rajagolan, 2024 ), precisamos compreender que: i) “Sul Global” não é apenas uma definição geográfica, mas geopolítica, cultural e epistêmica; ii) “Sul Global” é um lugar discursivo, um lugar de produção de conhecimentos, plural e diálógico; iii) “Sul Global” não é só o “Brasil”, nem o “Brazil”, mas sim os “Brasis” - comunidades que foram colocadas e se mantêm à margem pela ausência de políticas públicas e políticas educacionais, a partir de diálogos e de pesquisas propositivas, plurais e críticas, visando a escutar atentamente essas comunidades, mentes e corpos que foram subalternizados e/ou periferizados, como, por exemplo, surdos/as, indígenas, imigrantes em crise e/ou negros/as. Que esta nova forma de (re)pensar e de (re)agir na Ciência da Língua(gem) possa ser a mola propulsora e/ou basilar pelos nossos pares na e fora das Instituições de Ensino Superior, pois precisamos fazer mais pesquisas “com” o Sul Global e “não mais sobre” o Sul Global. E para tal intento, precisamos de um (re) pensar glocal e um agir global. Este dossiê é composto de 8 (oito) artigos de pesquisadores/as de diferentes partes do Brasil e uma entrevista que foi realizada por nós com o legendário Alastair Pennycook, da Universidade de Tecnologia de Sydiney (Austrália) e do MultiLing, Oslo, Noruega.

O primeiro artigo1 intitulado “Linguagens etéreas: interpelações para a Linguística Aplicada Crítica desde o Sul Global” é de autoria de Carlos Matheus da Silva-Mello, Vivian Silva Castelo Branco, Barbra Sabota, Laryssa Paulino de Queiroz Sousa, Viviane Pires Viana Silvestre, Ana Luísa Carvalho Rodrigues e Fernanda Franco Tiraboschi, pesquisadores/as da Universidade Estadual de Goiás (UEG). Neste texto, os/as autores/as problematizam a mobilização de construções de sentidos e de linguagens etéreas que emergem a partir de uma produção multimodal como parte do projeto Etérea (Criolo, 2019b), proposto por uma coletividade de artistas, incluindo Criolo, bem como discutem o potencial pedagógico deste material para a educação linguística crítica. Dessa maneira, as problematizações dos/as autores/as entrelaçam olhares onto-epistemológicos que envolvem estudos sobre a interculturalidade crítica, a decolonialidade e a interseccionalidade. Para proceder à leitura do material, se propuseram a tecer uma cartografia por meio de uma rizomatização semiótica que foi construída a partir de movimentos de sentipensar-praxiologizar-afetar. As discussões presentes no artigo apontam que a obra multimodal denuncia e explicita, de maneira crítica, opressões sociais ligadas à raça e à sexualidade e tem o potencial de promover problematizações sobre questões de interculturalidade crítica, as quais podem contribuir para uma educação linguística comprometida com a luta contra a manutenção das desigualdades sociais. Além disso, conforme realçado pelos autores/as, este estudo fomenta uma reflexão sobre como a linguagem pode favorecer trânsitos moventes por tempos-espaços múltiplos e alineares, ao criar resistências e reexistências em sua busca pela justiça social.

A seguir, Daiane da Fonseca Pereira, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), com o artigo intitulado “O conhecimento nosso de cada dia: desafios epistemológicos atuais”, visa a refletir sobre possibilidades de escapar da lógica dicotômica do pensamento europeu que subordina sujeitos, saberes e promove epistemicídio em massa. Considerando o Pós-Segunda Guerra como momento de guinada, a autora questiona quais as possibilidades de não repetir o padrão epistêmico ocidental como modelo referencial do conhecimento que assegura a permanência de elites intelectuais que seguem um cânone branco, que não dá conta das dinâmicas internas da sociedade brasileira. Para tanto, a autora propõe uma revisão bibliográfica em autores/as pós-coloniais, os/as quais investem na chave da racialização para compreender como o projeto europeu colonização se estabelece como forma de dominação. A autora evidencia a necessidade permanente de questionar a forma eurocêntrica de como se aplica o conhecimento iluminista, o que contribuirá para que escutemos novas vozes e para que outros saberes possam ser difundidos; afinal, não é aceitável pensar a produção de conhecimento no ocidente sem problematizar o investimento feito para negar a capacidade de produção de saberes de povos não europeus.

No terceiro artigo, Cristiane Ribeiro Barbosa da Silva e Leonardo Zenha Coreiro, da Universidade Federal do Pará (UFPA), com o artigo intitulado “Emergências das vozes do Sul nas aulas de língua inglesa: possibilidades formativas transgressoras com um dispositivo cibercultural”, intencionam apresentar e discutir atos de currículo (agenciamentos) com os quais uma turma de estudantes, praticantes culturais - diante do “sistema-mundo moderno capitalista, colonial/patriarcal”, na atual versão neoliberal - aliou-se à luta antirracista a partir de práticas pedagógicas formativas nas aulas de língua inglesa. O estudo adotou o método da ciberpesquisa-formação com acolhimento da bricolagem dos cotidianos ciberculturais, e assumiu um rigor outro no “fazerpensar” a pesquisa em Educação. Esse direcionamento teórico-metodológico possibilitou à autora e ao autor diálogos entre a linguística aplicada, transgressiva, indisciplinar e a insurgência do Sul Global. A investigação ocorreu durante aulas de língua inglesa em um Instituto Tecnológico do Pará com o uso das tecnologias digitais e acionamento do modo inventivo da interface do Padlet (dispositivo cibercultural), que permitiu à pesquisadora e ao pesquisador forjarem o processo formativo potencialmente autoral e transgressor, propiciando a emergência de narrativas autorizantes, vozes insurgentes dos praticantes culturais: sujeitos da pesquisa. Desse modo, os atos de currículo mediados pelas tecnologias digitais apontaram práticas transgressoras de aprendizagens, enredadas ao uso social político-pedagógico e indisciplinar da língua inglesa.

O quarto artigo é de autoria de Ana Karina de Oliveira Nascimento e Thiago de Melo Cardoso Santos, ambos pesquisadora e pesquisador da Universidade Federal de Sergipe (UFS). O texto intitula-se “Exploring Critical Racial Literacy in English Language Teaching: Experiences from a Teaching Internship” trata de uma experiência de estágio docente realizado durante o mestrado em Letras, no qual foi ministrada a disciplina “Língua Inglesa I” para estudantes ingressantes no curso de graduação em Letras (Português/Inglês) da Universidade Federal de Sergipe. Além de abordar os tópicos da ementa da disciplina, com foco na língua inglesa, os autores apresentaram discussões sobre a teoria racial crítica e seu desenvolvimento no contexto educacional, por meio de atividades didáticas fundamentadas nas teorias de letramento racial crítico e interseccionalidade. Nesse contexto, a autora e o autor examinaram as suas práticas como docentes e as reflexões advindas dessa experiência, as quais ampliaram a sua compreensão sobre questões étnico-raciais, suas conexões com a educação linguística em língua inglesa e os seus impactos nas práticas sociais contemporâneas, incluindo as trocas de experiência com os discentes. Os resultados, em síntese, indicam a relevância da construção de pontes entre a produção de conhecimento acadêmico e as práticas sociais de grupos marginalizados na educação linguística em inglês.

No quinto artigo, situado no campo da Linguística Aplicada contemporânea, Danilo da Conceição Pereira Silva e Vitor Gabriel Caetano Alves, do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia de Alagoas, com o artigo intitulado “Há crianças portuguesas que só falam brasileiro: ideologias linguísticas coloniais no nexo online-offline”, tem como objetivo interpretar criticamente ideologias linguísticas mobilizadas nas controvérsias públicas online em torno da matéria jornalística “Há crianças portuguesas que só falam ‘brasileiro’”, publicada pelo jornal português Diário de Notícias, em novembro 2021. Para tanto, os autores realizaram uma etnografia digital de caráter não-participante, praticada entre junho e novembro de 2023, na página do veículo na rede social Facebook. A análise dos dados gerados no trabalho etnográfico permitiram que os autores argumentassem sobre uma intensa circulação de “ideologias linguísticas coloniais” nas práticas metalinguísticas online-offline analisadas. Ou seja, sobre o trânsito de crenças, racionalizações e afetos sobre línguas, usos e usuários, que projetam classificações raciais de base colonial. Em linhas gerais, segundo os autores, essas ideologias atuam na produção de hierarquias linguísticas como hierarquias raciais; na afirmação do purismo linguístico nacionalista como política linguística de higienização; e, por fim, em dinâmicas de feminização e de sexualização de línguas e seus falantes como instâncias de uma corporificação linguística violenta. Esses processos apagam a “invenção das línguas” como ecnologia de dominação e de cristianização dos povos colonizados, uma vez que depreciam línguas, culturas e identidades dos povos brasileiros em função da presumida superioridade ontológica portuguesa, legitimando e atualizando discursos difusos da violência colonial, a contrapelo de imaginários assimilacionistas difundidos na retórica transnacional de que Brasil e Portugal seriam “países irmãos”.

O sexto artigo é de Irando Alves Martins Neto do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia de São Paulo. O artigo intitula-se “Southern Voices: Subversive Literacies of Migrant Women in Adult Education”. Neste texto, o autor investiga de que forma a escrita de duas estudantes da Educação de Jovens e Adultos se configura como uma subversão de normas sociais e linguísticas. Para tanto, utilizou-se a análise narrativa como metodologia que incorpora a natureza discursiva, situada e performativa das histórias estudadas. No nível social, o acesso à leitura e à escrita é, para as estudantes, uma subversão de normas impostas, que as privaram do direito à educação. Na condição de mulheres que migraram do Nordeste para o Sudeste brasileiro em busca de melhores condições de vida, voltar a estudar e aprender a ler e escrever são atos de resistência que desafiam o status quo. No nível linguístico, as alunas reiteraram suas intencionalidades enunciativas ao transgredirem a norma-padrão da língua portuguesa, ampliando as possibilidades de sentido dos textos a partir do uso subversivo de pontuação e dêiticos. Os resultados enfatizam a necessidade de reconhecer as histórias de letramento das estudantes como uma denúncia à atuação insuficiente do Estado quanto à oferta de educação de qualidade a todos. Ademais, os resultados indicam a necessidade de um ensino de língua que reconheça escritas não institucionalizadas como saberes a serem estudados em sala de aula, minimizando a linha abissal entre oralidade e escrita e entre saberes escolares e não escolares.

O sétimo artigo é de Phelipe de Lima Cerdeira, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e de Denise Akemi Hibrano, da Universidade Federal do Paraná (UFPR) com o artigo intitulado “Para descobrir mundos outros, nomear as coisas e (re)inventar(nos): o lugar da literatura ao decolonizar os saberes e sulear a formação inicial docente em Letras”. Neste artigo, o autor e a autora discutem como a literatura se constitui enquanto espaço para as descobertas de mundos outros e território(s) para os reconhecimentos de culturas, identidades, saberes, poderes, raças e desigualdades sociais. Metodologicamente, o autor e a autora analisaram os dados de um questionário no Google Forms, destinado aos licenciandos em Letras de duas universidades públicas. Nos resultados, destacam-se: i) silenciamento e limitação das práticas literárias na Educação Básica; ii) engajamento discente nas leituras e papel docente; iii) a literatura como um agente de transformação. Sublinhase que os licenciados percebem seus loci de enunciação, reconhecendo as teias de poder que os constituem e valorizando o literário como caminho para nomear maneiras outras de (se) estar no mundo. O estudo contribuiu para o entendimento da sociedade contemporânea e para os desafios na formação inicial docente.

A seguir, Davidson Martins Viana Alves, da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Secretaria de Educação do Estado do Rio de Janeiro, com o artigo intitulado “Tambolinguística e autoetnografia: Possibilidade teórico-metodológica para o estudo das línguas de territórios pretos afrodiaspóricos”, busca apresentar uma possibilidade teórica inovadora em relação aos estudos de contato linguístico com ênfase em questões étnicorraciais e históricas e em diálogo com a espiritualidade. Objetivou-se propor um caminho de análise e observação linguística transdisciplinar, que compreende o necessário aprofundamento científico entre racialidade negra e linguagem, haja vista o pilar fundamental para se entender as africanidades seja conceber sua religiosidade ancestral. E ao se debruçar em territórios afrodiaspóricos brasileiros (terreiros, quilombos, favelas e escolas de samba), o autor aventa (re)construir um acervo de materiais para diversas áreas de conhecimento, rompendo com modelos investigativos eurocêntricos (cartesiano e positivista). Pontua também a necessidade de que pesquisas africanistas da linguagem, em longo prazo, possam minimizar o racismo acadêmico que há na ciência, promovendo a heterogeneidade dos sujeitos e sendo referência ao fomento das manifestações linguístico-culturais negras.

Para finalizar o dossiê, nós - Kleber Aparecido da Silva, da Universidade de Brasília, e Leketi Makalela, da Universidade de Witwatersrand (Africa do Sul), - realizamos uma entrevista com Alastair Pennycook, da Universidade de Tecnologia de Sidney (Austrália) e do MultiLing, Oslo, Noruega. Essa entrevista está dividida em duas partes. Primeiro, pretendemos aprofundar os fundamentos filosóficos e as motivações que guiaram a ilustre carreira de Alastair Pennycook, oferecendo aos/as leitores/as deste dossiê temático um olhar aprofundado sobre as forças que moldam a sua investigação e as suas posições teóricas. A seguir, o nosso ilustre entrevistado procura inspirar a próxima geração de pesquisadores/as da Linguística Aplicada, (com)partilhando as suas ideias sobre como navegar nas complexidades da investigação interdisciplinar, a transformação das suas perspectivas teóricas e a sua visão para o futuro da Linguística Aplicada.

Em síntese, o presente dossiê temático problematiza os construtos Língua, raça e o Sul Global, desafiando as versões euro-americanas da realidade sob o termo guarda-chuva - Sul Globais. Foram submetidos 45 (quarenta e cinco) propostas de artigos para este dossiê temático, e a partir das normas da Revista TLA e do Scielo.br, aceitamos 8 (oito) artigos e 1 (uma) entrevista que, contemplam, por sua vez, os seguintes temas: i) equidade/ desigualdade; ii) justiça social; iii) raça; iv) interseccionalidade; v) políticas linguísticas; vi) letramento racial; vii) globalização e seus efeitos na sociedade contemporânea; e viii) diversidade, práticas sociais e afirmação de direitos no mundo multipolar contemporâneo.

Agradecemos os/as editores/as da Revista Trabalhos em Linguística Aplicada da Unicamp - Daniel do Nascimento e Silva (UFSC), Junot de Oliveira Maia (UFMG) e Ana Cecília Cossi Bizon (Unicamp), que nos acompanharam no início e no meio do processo e os/as colegas que deram continuidade ao trabalho de organização/ materialização desta empreitada acadêmica - Erica Lima (Unicamp) e Simone Tiemi Hashiguti (Unicamp). Agradecimentos especiais a Esmeraldo Armando Santos (Unicamp) e a Ana Paula Golob Fernandes (Unicamp) pelo apoio incondicional prestado na gestação e nascimento deste dossiê, a todos/as os/as pareceristas com formação e atuação profissional na área de língua(gen)s, raça e Sul Global, que investiram voluntariamente o seu tempo e energia na materialização desta iniciativa acadêmica e, finalmente, ao querido e à querida colegas Paulo Roberto Massaro (Universidade de São Paulo) e Silvia Maria de Oliveira Penna (Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia de Ouro Preto), que gentilmente colaboraram com a leitura/revisão (em português e em inglês, respectivamente) desta Apresentação. Esperamos que nosso dossiê temático possa trazer contribuições sólidas para a Linguística Aplicada brasileira, a partir de perspectivas críticas e/ou decoloniais e igualmente possa - parafraseando Collins (2019) - desafiar estruturas de poder a partir do seu interior, trabalhando as rachaduras do sistema o que requer, não obstante aprender a falar várias línguas de poder de forma convincente.

  • 1
    Para a elaboração desta visão geral/overview dos artigos que fazem parte do nosso dossiê, levamos em consideração os resumos dos artigos submetidos pelos/as autores/as no processo de avaliação das propostas de textos.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jan 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    18 Out 2024
  • Aceito
    21 Out 2024
  • Publicado
    24 Out 2024
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